O God! I could be bounded in a nutshell
and count myself a King of infinite space.
A epígrafe do conto “O aleph” traz uma citação de Hamlet, II, 2, com a imagem de um aprisionamento numa casca de noz. No epílogo, Borges confessa alguma influência do conto de Wells, “The Cristal Egg”, de 1899.
É importante registrar uma visão particular do Inferno da Divina Comédia. As relações e aproximações entre as duas obras é impressionante.
Começa com uma data: “a candente manhã de fevereiro” em que morre a principal figura feminina do conto. Depois ficamos sabendo que o ano era 1929. A data de seu aniversário, 30 de abril, foi escolhida para as periódicas visitas do autor narrador à casa em que ela morava. Pensar nessas datas e números revela a recorrência do número 3, o preferido por Dante com seu poema de três cantos, associado ao número 9, seu múltiplo perfeito (3 x 3), que volta a aparecer no ano de 1929.
Ultrapassada a lembrança dos números, a outra coincidência é bem clara. O nome da mulher é Beatriz Viterbo. Sua morte é anunciada logo nas primeiras linhas do primeiro parágrafo. O sobrenome remete a uma outra obra famosa de Dante: Vita nova. A morte também foi após uma agonia profunda, infernal. A escolha do sobrenome revela uma rima (inferno e Viterbo).
Tudo parece ser intencional neste conto de Borges, os mínimos detalhes de datas e nomes, mergulhados em seu vasto universo de erudição e inspiração.
Mais adiante podemos ler: “Beatriz era alta, frágil…”. Nada mais claro que essa atribuição da fragilidade a essa personagem e sua ligação à vida breve da Beatriz por quem Dante se apaixonou. No mesmo parágrafo, referindo-se a seu mais importante interlocutor, Carlos Argentino Daneri, Borges vai observar que “A duas gerações de distância, o s italiano e a exuberante gesticulação italiana sobreviveram nele.” Mais além, lembra uma punição infernal, afirmando: “…a mais envenenada de suas setas não o atingirá”.
A tão hostilizada produção poética de Carlos Argentino também tem ligações com a Divina Comédia. O texto menciona três vezes seus Cantos, atabalhoadamente denominados Augural, Prologal ou simplesmente Prólogo. Além do mais o poema em elaboração desse escritor ridículo, inventado por Borges, trata de uma descrição do planeta, através de uma… “le voyage que conto é…”. Eis aqui subentendida a viagem de Dante em sua obra famosa.
Para completar as comparações, o pitoresco neologismo “branquiceleste” sugere o céu, numa sutil alusão ao Paraíso.
Finamente o aleph vai ser encontrado.
Por telefone Carlos Daneri avisa, desesperado, que sua casa vai ser demolida pelos proprietários e o aleph está no porão da sala de jantar. Borges desce por longa escada até o fundo de um porão escuro, cheio de terror, para encontrar esse que é um dos pontos do espaço que contém todos os outros pontos. O poeta desce ao inferno, encontra o aleph e se recusa habilmente a descrever o seu feliz achado.
Perto do final da história a descrição de Borges é um dos mais brilhantes exemplos de prosa poética e escrita automática.
Transcrevo:
“Na parte inferior do degrau, a direita vi uma pequena esfera furta-cor, de um fulgor quase intolerável. No início julguei-a giratória; depois compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. (…) Vi o mar populoso, vi a alvorada e a tarde, vi as multidões da América, vi uma teia de aranha prateada no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto truncado (era Londres), vi intermináveis olhos imediatos perscrutando-se em mim como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu…”
Jorge Luis Borges
O Aleph
Companhia das Letras