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Resenha: A VERDADEIRA HISTÓRIA DO SÉCULO 20

A VERDADEIRA HISTÓRIA DO SÉCULO 20 (Claudio Willer - Editora Córrego, 2016)
A VERDADEIRA HISTÓRIA DO SÉCULO 20 (Claudio Willer – Editora Córrego, 2016)

 

Em uma das releituras do mais recente livro de Claudio Willer, senti uma força obscura e misteriosa que me obrigou a escrever o que senti durante vários dias. Era a mesma energia que me faz escrever alguma poesia.

Existe no livro revelações que passeiam pelos planos simbólico e real. O próprio título já antecipa essa característica marcante: é história e é verdade alternativamente.

O primeiro poema do livro, quando foi lido na Casa das Rosas, me deixou profundamente impressionado. Parecia ouvir aquelas pedras batendo na vidraça para atrair ou receber os versos, só que então eles já estavam ali, diante de mim e registrados no livro que eu tinha em minhas mãos.

Reli várias vezes  até me certificar que neste poema estavam, em síntese perfeita, ideias que eu mesmo agitava em minha mente: vida/morte, amor louco, o maravilhoso, o sublime, e para terminar: “a impressão de que viver foi inútil”.

Quase não acreditei no que estava a ouvir!

Vou citando a seguir alguns versos, às vezes pequenos fragmentos, que deixam clara uma característica que eu já pressentia estar no interior dos poemas: a aproximação do texto ao ser humano e a cada poeta, individualmente.

“você: véu de gaze azulada roçando, suave apelo”

Aqui a imagem é bem clara e leva a uma constatação da influência da cor azul, céu límpido, Picasso, Miró, evocações despertadas pelo verso. Percebi nesta altura um dos motivos profundos, inconsciente por certo, da influência grande da cor azul, recorrente em quase tudo que escrevo. Quando não está a palavra, está a lembrança dela, sua paz, o retrato do infinito.

Em “Trópico de Capricórnio”, outra coincidência de palavras, logo no primeiro verso: “fragmentos celestes”.  O livro que publiquei em 2010 tem a palavra “fragmentos” em seu título, que se volta para os sertões, com sua poeira, seus fragmentos de terra seca.

Na série intitulada “Cinemas”, os primeiros versos são certeiros: “ensinar a enxergar”,  “sempre amei as imagens”, “este é o mergulho na densidade do mundo”, “os monólogos” (quem assistiu “Persona” sabe do que se está falando ou rememorando). Mesmo um filme que não existe está presente no livro. Recordo aqui a afirmação de que depois do sopro do primeiro verso, o demônio se encarrega do resto, ressalvando que aqui o demo é apenas uma figura imaginada, que existe mas não é, como ponderou Guimarães Rosa.

Assim como “Chuva oblíqua” de Fernando Pessoa equivale a uma aula de pensamento analógico, Claudio Willer com este livro dá uma aula sobre poesia surrealista.

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O Aleph

jorge_aleph

O God! I could be bounded in a nutshell
and count myself a King of infinite space.

 

A epígrafe do conto “O aleph” traz uma citação de Hamlet, II, 2, com a imagem de um aprisionamento numa casca de noz. No epílogo, Borges confessa alguma influência do conto de Wells, “The Cristal Egg”, de 1899.

É importante registrar uma visão particular do Inferno da Divina Comédia. As relações e aproximações entre as duas obras é impressionante.

Começa com uma data: “a candente manhã de fevereiro” em que morre a principal figura feminina do conto. Depois ficamos sabendo que o ano era 1929. A data de seu aniversário, 30 de abril, foi escolhida para as periódicas visitas do autor narrador à casa em que ela morava. Pensar nessas datas e números revela a recorrência do número 3, o preferido por Dante com seu poema de três cantos, associado ao número 9, seu múltiplo perfeito (3 x 3), que volta a aparecer no ano de 1929.

Ultrapassada a lembrança dos números, a outra coincidência é bem clara. O nome da mulher é Beatriz Viterbo. Sua morte é anunciada logo nas primeiras linhas do primeiro parágrafo. O sobrenome remete a uma outra obra famosa de Dante: Vita nova. A morte também foi após uma agonia profunda, infernal. A escolha do sobrenome revela uma rima (inferno e Viterbo).

Tudo parece ser intencional neste conto de Borges, os mínimos detalhes de datas e nomes, mergulhados em seu vasto universo de erudição e inspiração.

Mais adiante podemos ler: “Beatriz era alta, frágil…”. Nada mais claro que essa atribuição da fragilidade a essa personagem e sua ligação à vida breve da Beatriz por quem Dante se apaixonou. No mesmo parágrafo, referindo-se a seu mais importante interlocutor, Carlos Argentino Daneri, Borges vai observar que “A duas gerações de distância, o s italiano e a exuberante gesticulação italiana sobreviveram nele.” Mais além, lembra uma punição infernal, afirmando: “…a mais envenenada de suas setas não o atingirá”.

A tão hostilizada produção poética de Carlos Argentino também tem ligações com a Divina Comédia. O texto menciona três vezes seus Cantos, atabalhoadamente denominados Augural, Prologal ou simplesmente Prólogo. Além do mais o poema em elaboração desse escritor ridículo, inventado por Borges, trata de uma descrição do planeta, através de uma… “le voyage que conto é…”. Eis aqui subentendida a viagem de Dante em sua obra famosa.

Para completar as comparações, o pitoresco neologismo “branquiceleste” sugere o céu, numa sutil alusão ao Paraíso.

Finamente o aleph vai ser encontrado.

Por telefone Carlos Daneri avisa, desesperado, que sua casa vai ser demolida pelos proprietários e o aleph está no porão da sala de jantar. Borges desce por longa escada até o fundo de um porão escuro, cheio de terror, para encontrar esse que é um dos pontos do espaço que contém todos os outros pontos. O poeta desce ao inferno, encontra o aleph e se recusa habilmente a descrever o seu feliz achado.

Perto do final da história a descrição de Borges é um dos mais brilhantes exemplos de prosa poética e escrita automática.

Transcrevo:

“Na parte inferior do degrau, a direita vi uma pequena esfera furta-cor, de um fulgor quase intolerável. No início julguei-a giratória; depois compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. (…) Vi o mar populoso, vi a alvorada e a tarde, vi as multidões da América, vi uma teia de aranha prateada no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto truncado (era Londres), vi intermináveis olhos imediatos perscrutando-se em mim como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu…”

Jorge Luis Borges
O Aleph
Companhia das Letras

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